Onde eu estava quando tomamos 7×1

(inspirado no texto da Rachel Juraski)

Assim que o Brasil derrotou o Chile, nas quartas-de-final da Copa do Mundo, eu já comecei a ficar com o cu na mão dali em diante.

Jogaríamos contra a Alemanha mas quem se importa? “Os caras estão amando o Brasil, teve um jogador lá que até disse que vai se mudar para a Bahia e tal”. Eu me agarrei nisso e pensei ‘eles vão pegar leve’. Sonho meu. Ah, e ainda tinha o negócio do Neymar, que tinha se machucado, a imprensa caiu em total desespero, como se a Seleção fosse um atleta somente. Outro mantra pra me agarrar: “temos 11 jogadores, temos 11 jogadores”.

Nos jogos do Brasil, minha irmã sempre fazia uns deliciosos quitutes (ela chegou a fazer pastel, coxinha, bolinho de arroz, drinks em geral), o que ajudava a dar uma aliviada a cada vez que o Fred jogava pior que eu. Mas, neste dia, no fatídico 8 de julho de 2014, ela não fez. Na verdade, fez algo sim. Compramos, uns dias antes, uma linguiça que tava em promoção no mercado. Era de frango recheada com queijo. E biscoito de polvilho. Prontos para a hora do show.

(As cenas a seguir são de dor e sofrimento)

Quando abri o saco de biscoito de polvilho, ele tava meio farofa e sujou todo o sofá. Tudo bem, vale tudo para conquistar o hexa. O negócio começou a ficar ainda pior quando era aqueles biscoitos DOCES (sério, parem de fabricar biscoito de polvilho doce, aquilo é um atentado à humanidade). Mas, como estava tensa e naturalmente ansiosa, comi meio pacote.

O clima não tava ajudando muito, tava muito frio em São Paulo, em Minas também (onde foi o jogo) e o pessoal tava com uma cara de cu porque “ai, meu Deus, o Neymar não joga”. Foda-se, gente. Vamos lá.

O Galvão Bueno deu a palavra de encorajamento dele, sua palestra motivacional e a gente pensou que dava para ir. Porra, é o Brasil, país vencedor de cinco Copas do Mundo, não é o G.E. Lagoinha da Vila Maria. Mas sei lá, a energia tava estranha.

O jogo começou, o cheiro de merda que vinha do campo estava sendo captado pelas TVs de todos os brasileiros quando a Alemanha fez o primeiro gol. Minha irmã suspeitou que essa primeira leva de azar era porque não tinham belisquetes pra gente comer. Foi no forno e tirou a linguiça.

PIOR COMIDA DA MINHA VIDA. Sinto pena, dó, injustiça social com o que fizeram com o leite e com o frango, para ser esmagado, processado e virado uma merda de linguiça. Talvez ela estivesse profetizando o que seria o 8 de julho.

Quando fizeram o segundo gol, eu pensei ‘pô, dá para virar. Tem que dar. Vai, Deus, ajuda aí’. Mas Deus não ajuda time preguiçoso e PLAU mais um gol da Alemanha. Nessa hora eu desisti. Vi meu pai gritando ‘Vai, Alemanha!’, minha irmã com cara de ‘que porra estou vendo’ e minha mãe, com comentários ‘gente, futebol é tudo roubado’.

Saí da sala. Entrei no quarto, fechei a janela e a porta, liguei o computador e fui ouvir música. Coloquei ‘A Luz de Tieta’ no último volume, para não ouvir a vizinhança gritar contra os alemães. Dei uma passadinha no Twitter, mas tava parecendo um cenário de guerra. Perdemos. 3×0. Vamos aceitar, tem outras Copa.

Minha mãe entra no quarto.

— Fê, 4×0.

— Fê, 5×0.

— Fê, 6×0.

— Fê, gol do Brasil…

— BELEZA, MÃE, EU TÔ ACOMPANHANDO POR AQUI (mentira, não tava, meus olhos vermelhos de ódio não conseguiam olhar para nada)

— Fê, você acredita que tá 7×1????

Fiquei lá ouvindo Tieta no repeat enquanto meus ouvidos estouravam até que, GRAÇAS A DEUS, o jogo acabou. Daí vem minha irmã falando: ‘AAAH HAHAHAH VAI PRA MERDA, BRASIL, TIME DE MERDA, 7X1 DE BOSTA’. Isso não tá acontecendo.

Mas tava.

No outro dia, o Brasil acordou meio de ressaca. E na cozinha de casa também: “se eu soubesse que essa linguiça seria tão ruim quanto o jogo, não teria feito”, resmungou minha irmã.

Depois vi que A Luz de Tieta foi a música que os alemães escolheram para homenagear a estadia no Brasil. Doce coincidência.

Feliz 7×1!

Ide em paz

Vim de uma família não muito religiosa, mas que sempre, por falta de instrução, não sei, quis marcar presença na igreja. Minha mãe nunca foi chegada numa reza, mas me obrigou a fazer catequese e crisma. Claro que isso não ia dar certo.

Desde pequena, fui apresentada ao Pai Nosso e à Ave Maria e deveria recorrer a essas orações sempre que precisasse. Não entendia, era pequena demais para juntar lé com cré e perceber que “assim na Terra como no Céu” não era “assina a Terra como no Céu”. Achava que, nesta parte, Deus ficava fazendo rabiscos com gravetos na areia da praia, com a assinatura dele, assim: dͦè̓͢uͭ͋ͅs.

Até então, tudo certo. Mas fui apresentada à Catequese. Lembro que tinha uns 8, 9 anos e me esperneava para não ir. Chorava muito, brigava com a minha mãe, dizia que igreja era chato d+. Mas fui. Longos três anos (três porque “repeti” o primeiro por falta). Na sala de aula, que ficava no andar de baixo da paróquia perto de casa, a turma era de 10 alunos. Tudo em idade escolar, pentelhas, falantes. Tinha um menino, que não lembro mais o nome, que era o transgressor da galera. A gente tinha uma apostila de lições, que tinha desenhos e passagens bíblicas. Ele pintava e colocava uns balõezinhos de fala, sempre com palavrões e conteúdo “maldoso” para uma igreja.

Os dois primeiros anos passaram voando na catequese (considere as faltas, que foram deveras divertidas brincando sábado à tarde em casa). O último ano — o derradeiro — era a Primeira Comunhão, a graduação da Igreja, a felicidade, ou também conhecido como: “uhu, agora eu posso pegar a hóstia na missa!”. Já estávamos nos preparativos finais para a missa dos catequisandos, e era aquela energia legal: prova de roupa, ensaio geral, cantos, risos, brincadeiras. Só não fazia estripulias dentro da Igreja. De resto me divertia bem. Até que o professor diz: “hoje a gente vai se confessar, tirar os pecados para receber a primeira hóstia”. Pronto, já era. Comecei a suar frio, todo mundo ficou naquele cagaço. Já me veio na cabeça um filme Idade Média, em que o padre tortura o fiel, e muitos diabinhos te levam para o inferno porque você “pecou”. Como era uma criança e não sabia a definição de “pecar” (ainda não sei, na verdade), já fiquei com o cu na mão só de lembrar no dia que a minha mãe pediu pra eu escovar os dentes antes de dormir e eu só joguei pasta de dente na boca, por pura preguiça. Help.

— Fernanda, você é a próxima. O padre está te esperando!

Eita.

No caminho, já ia me confessando. “Deus, desculpa, tá? Não faço mais. Desculpa. Por favor, me desculpa. Deus”. Esperava por uma cabine de madeira, com o papa dentro, me julgando internamente. Medo. Frio na espinha. Dor.

Mas não. O padre tava bem de boas numa sala e perguntou bem sorridente:

— E aí, Fernanda, é uma boa filha?

— Eu sou.

— Você responde pro seu pai ou pra sua mãe?

— Nunca (mentira, né)

— E você briga com a sua irmã?

— De vez em quando só.

— Tudo bem. Ó Deus, perdoe essa menina dos pecados (ele falou mais coisa, é que não lembro). Agora vá rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria.

— Obrigada, padre.

U F A.

Saí de lá feliz e aliviada por saber que o processo é simples assim. É só pedir desculpa, rezar um negocinho e PLAU. Saí contando pra todo mundo que não tinha pecados.

Mas nem por isso frequentava igreja. Peguei muita hóstia, mas odiava a sensação de sair de casa num domingo, perder meu Silvio Santos (não tinha internet em casa ainda) para ver o padre falar. E olha que ele era gente boa.

Uns anos se passaram e lá vem minha mãe de novo: “ah, vai ter que fazer Crisma!”. Pô, legal.

Nesta época, lá pra 2007, 2008, tínhamos mudado de casa, e fui para outra paróquia. Tudo novo, não conhecia ninguém. Mas agora a pegada era diferente, era um negócio meio teen, pra frentex. A “galera” já veio me cumprimentando “e aí, Fê!” na maior intimidade. Só faltou fazer hangloose.

Lembro que a gente ficava em roda conversando sobre tudo, menos igreja. Era legal (tirando o fato de acordar num domingo às 9h), lá eu tive o primeiro contato com um debate sobre mídia. Tudo bem superficial, mas foi interessante. Tinha um cara que se chamava “Metal”. Antes de conhecer a igreja, era um “sem Deus”. Hoje ama o heavymetal e Jesus. “Eu adoro música. Tenho 4GB de música no meu computador. Tem rock mas tem muito Diante do Trono também”, ele falava e todo mundo: “ooooh!”.

O pessoal era meio “amizade verdadeira” mas não deu. Fiquei dois meses e abandonei. Desde então, não pisei em igrejas a não ser para ir a casamentos e missas de sétimo dia. Por causa de um evento extraordinário, tive de ir à missa neste ano, inclusive na mesma paróquia que “iniciei” a Crisma. Lá, os frequentadores eram 95% mulheres idosas, 4% homens idosos e 1% de gente jovem, que no caso era eu e uma criança chorona. No altar, uma escultura muito bem feita de Jesus com os braços para cima, corpo seminu, como se tivesse voando. O padre falava sobre amor e felicidade. Disse que quem não acredita em Deus não tem a felicidade verdadeira e que deveríamos nos afastar dessas pessoas . Saí de lá com mais perguntas sobre a Igreja de que quando eu entrei. Não quis voltar.

No dia da minha Primeira Comunhão, foi meu primeiro dia da hóstia, fiz escova no meu cabelo pela primeira vez (me senti flawless) e comi a melhor coxinha da minha vida. Foi um dia feliz, todos estavam reunidos para celebrar uma parte legal da minha vida, que eu não sabia o significado. E, ao contrário do que o padre disse, eu não me importava se a felicidade era terrena ou divina, e não tava nem aí se tinha gente ateu ou crente fervoroso. Eu queria compartilhar um momento gostoso da minha vida, com coxinha e Coca-cola gelada.

Depois de muito tempo indo a igreja e decorando as missas, aprendi que existe sim a melhor parte de tudo isso: é quando o padre avisa sobre os eventos, fala da agenda da semana e diz: “Ide em paz!”.

Glub glub

Não é a primeira vez que eu começo um texto falando sobre água. E aqui não vai ser diferente.

Eu gosto muito de água. Piscina, mar, praia, baldinho, tudo o que envolve h20 é fascinante. É pra passar o dia inteiro de molho, até ver sua pele cair e seu rosto e dedos enrugarem tanto a ponto de você parecer uma velha de 150 anos (mas bem vividos).

Nasci e me criei em São Paulo, um lugar que mal tem água direito. Mas nem por isso essa vontade de ser peixe vai embora. Às vezes tenho a sensação de que estou flutuando numa piscina, sentindo os raios de sol queimando minha pele enquanto sinto as ondinhas da água no meu corpo. Quando abro os olhos para a realidade, vejo uma cidade meio seca e com pouca opção aquática (e boa) de lazer.

Quando me dá uma vontade dessas, não tomo banho (até porque não dá o mesmo efeito) e nem entro num balde (por motivos óbvios). Ligo o computador e escrevo. Sobre a vida, minhas gatas, amores, dores, futuro e água também, por que não? Me afogo em um mundo cheio de letrinhas e gramáticas e, quando volto ao mundo real, penso: “foi um bom mergulho!”.

Lá pros meus 9, 10 anos, escrevi uma história sobre as quatro estações. Ainda tenho escrito, e lembro que falava sobre brigas que a primavera tinha com o verão, que tinha com o outono, que tinha com o inverno. Claro que, na história, o vilão era o inverno, nunca gostei de frio. Mostrei pra minha professora, que adorou. Não tava lá essas coisas, mas me dediquei tanto naquilo, passei uma tarde toda desenhando e escrevendo a história que, para mim, era como se estivesse psicografando a Ruth Rocha.

Com mais ou menos essa idade, escrevi outro conto, mas esse não lembro do quê. Tinha adorado, achava que já dominava a técnica da escrita. Fiquei tão animada que reescrevi num caderno, arranquei as folhas e mandei para a Companhia das Letras, via Correios. Imaginava que todos iam se encantar com a história, e que seria imediatamente publicada em forma de um livro todo ilustrado. A resposta demorou muito para chegar e nem dava para saber o status da coisa, não tinha telefone na época. Só me faltava esperar.

Uns dois meses depois, recebi uma carta toda enfeitada, digitada, coisa de primeiro mundo mesmo. Não sei se joguei fora ou não, mas lembro que dizia mais ou menos assim: “Fernanda, adoramos sua história! Mas, infelizmente, não podemos publicá-la. Ainda assim, não desista nunca de escrever!”. Aquilo foi o fim. Não quis chorar para não demonstrar fraqueza, mas lembro que xinguei muito a editora e escondi todos os livros que tinha deles. Minha “A Odisseia”, da Ruth Ramos, ficou malocado um bom tempo no armário, até eu me mudar de casa. Culpa da Companhia de Letras.

Demorei para me afogar na escrita. Tava em luto, talvez deva ter sido minha primeira decepção na vida. Quando decidi, novamente, pegar minha caneta e voltar a escrever qualquer coisa, era como se descesse a escadinha da piscina — e nem precisava prender a respiração, tava no meu habitat. E desde então não parei mais. Sei de uma vez, quando tinha uns 14 anos, que escrevi um conto falando das minhas amigas de escola. Escrevi no meu caderninho, elas descobriram e ficaram sem falar comigo por um dia. Eu não entendi, tinha achado maior poesia, pura arte.

Muito tempo se passou, não fiquei na neura de qual faculdade cursar. Quatro anos aprendendo (e desaprendendo) sobre Jornalismo me fez ter algumas opiniões: a incerteza de que escolhi uma profissão incerta, com mercado mais indefinido ainda, com uma galera meio estranha.

Com certeza absoluta, tive mais decepções na minha vida, muitas delas causadas pelo jornalismo, pela escrita. Mas esse negócio é meio síndrome de Estocolmo, a gente ama. Vai se afogando e nem vê. É tipo uma poça de volume morto na Cantareira. Mas, pra mim, vai ter sempre aquele quê de volume vivo que vale a pena se afogar. ♥

Um legado para a Mata Atlântica

Reserva particular da Mata Atlântica começa a produzir mudas para reflorestamento e paisagismo; projeto ajuda a proteger bioma e reforça a preservação e conhecimento da floresta

A Mata Atlântica é um bioma que já esteve presente em 17 estados brasileiros e hoje restam somente 8,5% da sua cobertura original. A destruição da floresta começou no Brasil-Colônia, ainda na fase da exploração do pau-brasil. Desde então, o bioma sofreu com diferentes ciclos econômicos, como cana-de-açúcar, café e ouro. A mata, que possui mais de 20 mil espécies de plantas, ainda se torna mais decisiva na proteção de sete das nove bacias hidrográficas brasileiras, garantindo água para consumo humano e animal, para controle de erosão e equilíbrio do clima. A Mata Atlântica disputa atualmente lugar com a expansão da agricultura e pecuária, industrialização e especulação imobiliária.

Palmito-juçara, uma das espécies nativas da Mata AtlânticaLocalizada no Vale do Ribeira, em São Paulo (SP), uma RPPN (reserva particular de patrimônio natural) é a grande esperança para este ameaçado bioma. Chamado de “Legado das Águas – Reserva Votorantim”, a unidade de conservação preserva uma área de 31 mil hectares – o equivalente a 31 mil campos de futebol. É uma das mais importantes reservas particulares do mundo, rica em biodiversidade e protetora dos mananciais do rio Juquiá, que abastece, ao longo de seu leito, as seis usinas hidrelétricas que compõem o Complexo Juquiá da Votorantim Energia.

Pensando na importância do ecossistema para a região e para a sociedade, o Legado das Águas criou o primeiro viveiro de mudas nativas. O espaço, que deve abrigar mais de 100 mil plantas por ano, ajuda na promoção das milhares de espécies da região, reforçando o cuidado com as florestas e atuando na promoção de reflorestamento de áreas degradadas conforme a lei.

David Canassa, gerente de sustentabilidade do Grupo Votorantim, afirma que o propósito “é fazer com que as pessoas entendam, vejam e sintam o que é a Mata Atlântica de perto. Ter espécies nativas em casa ajuda a compreender que a floresta é um tesouro e deve ser bem cuidada”, diz. Além disso, o reflorestamento ajuda a beneficiar a natureza. “Esse foco de negócio para o viveiro aumenta a área da Mata Atlântica, reforça sua importância e ajuda a espalhar espécies nativas em seu lugar de origem”, conta.

Mata Atlântica ornamental

A ideia inicial do viveiro de mudas era, segundo Canassa, investir em espécies nativas somente para o reflorestamento, em cumprimento ao Código Florestal (Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012). Isso porque a norma determina que áreas rurais tenham de 20% a 80% de seu território reflorestado com árvores nativas do bioma onde esteja inserido. A biodiversidade da reserva foi tanta que o paisagismo entrou na pauta do projeto. Para dar apoio a catalogação dessas espécies, Ricardo Rodrigues Ribeiro, doutor em Biologia e professor na Esalq/USP, é o responsável pelo enriquecimento genético da floresta. No cuidado com as sementes, está André Nave, doutor em Recursos Florestais pela Esalq/USP e consultor em mudas nativas. Para cuidar do paisagismo, está o mestre em Botânica pela Esalq/USP e paisagista André Nave.

“Nosso trabalho é identificar as espécies de flora de toda a reserva. A princípio, o projeto estava voltado somente para reflorestamento, mas com a beleza das plantas nativas, sugerimos que o viveiro tivesse uma linha de paisagismo também. Deu certo!”, conta Ricardo Rodrigues. Entre as mais de 200 espécies selecionadas para o reflorestamento e ornamentação, estão a peroba, cedro, jequitibá e ipês. Para a linha de paisagismo, bromélias, tibouchina (quaresmeira), manacá-da-serra e outras plantas ajudam a compor essa linha.

As espécies são selecionadas de acordo com as árvores matrizes de cada planta, ou seja, aquela que funciona como “porta-sementes” e apresenta bom crescimento, saúde, copa bem formada e tronco sem danos. Depois de coletadas as sementes, é feito os testes de germinação, beneficiamento e armazenamento de cada uma delas. “Cada espécie se comporta de uma forma diferente. Estamos trabalhando com 200 tipos de plantas, algumas reproduções fazemos por sementes, outras por estarquia [reprodução através de caules, raízes ou folhas de uma planta]”, explica André Nave. “Depois desse processo, as mudinhas ficam em uma estufa, recebendo sol e água, até ficarem maduras o suficiente para serem comercializadas”. A expectativa, segundo dados do Legado das Águas, é colher as primeiras plantas ainda no meio deste ano.

Comunidade envolvida

O viveiro de mudas, além de auxiliar no conhecimento da Mata Atlântica através do paisagismo e no reflorestamento de áreas, possui caráter social. Como forma de retribuir o apoio das cidades de Miracatu, Juquiá e Tapiraí – municípios onde a Reserva está localizada –, o projeto proporciona retorno financeiro para quem vive na região.

“Espécies em potencial econômico, como as frutíferas, medicinais, ornamentais e alimentícias podem ser fonte de renda para a região. Um exemplo é o palmito-juçara, que tanto pode servir como alimento ou como suco, o juçaí”, conta Ricardo Rodrigues. “É algo que é 100% da Mata Atlântica, e que pode ser um novo ramo econômico para a comunidade e ainda divulgar as delícias e belezas desse bioma”.

Ao longo do desenvolvimento do viveiro, centros de capacitação serão construídos para convidar a comunidade local a aprender como manusear mudas nativas. “Este é o braço social do projeto, queremos gerar conhecimento dentro da Reserva para contribuir com o aumento da qualidade de vida da região”, diz Rodrigues. As cidades do entorno da Reserva possuem um dos mais baixos IDHs (Índices de Desenvolvimento Humano) do estado.

Plantas exóticas no jardim de casa

Quando nossas avós cuidavam com muito carinho de seus jardins, talvez nem imaginavam mas a maioria das plantas ornamentais do Brasil são exóticas. Espécies como azálea, antúrio e comigo-ninguém-pode chegaram ao país e logo caíram no gosto dos amantes do verde. Mas será que o cuidado de espécies nativas da Mata Atlântica é o mesmo para as exóticas? André Nave explica: “O cuidado com as plantas é o mesmo. Só se deve ter uma atenção maior com algumas espécies, que ficam mais na sombra e recebendo água com frequência, afinal de contas, na região da Mata Atlântica chove relativamente bem”, diz.

A Reserva Votorantim é uma esperança para a Mata Atlântica e a área verde de São Paulo. Além de proteger os recursos hídricos, mostra que a proximidade com a capital não é problema e que floresta e desenvolvimento urbano podem conviver numa boa. “Hoje o Legado das Águas é uma das melhores unidades de conservação do Brasil e mostra que esta iniciativa contribui para uma melhor qualidade de vida e preocupação com nosso bioma”, diz Ricardo Rodrigues.

Texto premiado na Semana Abril de Jornalismo Ambiental, em novembro de 2014.

Uma floresta no papel

A certificação florestal pode ser uma das saídas para a conservação das florestas e a garantia de um produto de origem madeireira sustentável

Reserva da Mata Atlântica no litoral norte

“Não desperdiça papel!”, esbravejava a professora na escola. Aquela folha branca, que ia ao lixo toda vez que um desenho ficava feio ou era exposta no varal da sala de aula, já foi, um dia, uma árvore. Para as crianças, era só uma base para colocar a imaginação para fora.

Talvez eles nem se dessem conta, mas aquele papel traz consigo uma série de “revoluções verdes”. Depois de reuniões que ocorreram principalmente entre os anos 1980 e 1990, o mundo começou a se preocupar com o planeta Terra. “Estávamos destruindo nossa casa! Algo precisa ser feito e rápido! Chega de papel, reduza o consumo de plástico! Alguém salve a Amazônia!”

O desespero era quase geral. A palavra sustentabilidade, nova no vocabulário e no dicionário da época, chegava mansa, envergonhada, mas com um significado enorme. Cientistas e ambientalistas começaram a fazer seu uso, ao afirmar que sim: dá para viver em harmonia com a natureza. O desafio é grande, mas há alternativas.

A partir de então, começaram-se a desenvolver inúmeras formas e ferramentas para transformar (para melhor) nosso planeta. Biocombustíveis já eram testados, fontes alternativas de energia, como a eólica e biodiesel, e a reciclagem se tornaram hype. Mas e o papel? Esse material, quase insubstituível em nossas atividades, usa como principal matéria-prima uma das vítimas da ação humana: a árvore. E agora, quem poderá nos defender?

Em 1992, durante a conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92, o mundo discutia todos esses temas importantes para a geração do nosso planeta. O encontro serviu como ponto de partida para reunir vozes do mundo todo, que definiria, através de um fórum: o que é manejo florestal sustentável? Em outras palavras, como podemos fazer com que o papel que usamos no dia a dia, não se torne o vilão e venha a acabar com as árvores do planeta?

Ambientalistas, economistas, militantes da causa social e muita gente interessada uniram forçar e criaram o Forest Stewardship Council®, ou FSC®. O objetivo era criar princípios e critérios que estejam em harmonia com a sociedade (respeitando leis trabalhistas e comunidade), meio ambiente (sem degradar!) e economia (criar desenvolvimento local e aumentar o bem-estar econômico). Quem seguisse todas as regrinhas, poderia ter um selo em seu produto, que atesta a preocupação com o planeta.

Neste selo, há um código que, quando ser pesquisado, mostra ao consumidor final qual tipo de árvore seu produto era, onde estava plantada e quem cultivava. No mundo são mais de 180 milhões de hectares certificados. É como se 180 milhões de Maracanãs respeitassem o social, ambiental e econômico!

Dentro do universo social, valorizar a comunidade local é muito importante. Em um mundo cada vez mais capitalista, respeitar os povos ribeirinhos e que dependem da floresta é fundamental.

Entre os beneficiados pelos princípios e critérios FSC é a Cooperativa dos Produtores Florestais, a Cooperfloresta. Desde 2005, a instituição beneficia 201 famílias a partir do manejo florestal madeireiro comunitário. Dividido em cooperativas comunitárias, os beneficiados produzem toras de madeiras, que viram produtos de origem 100% madeireira.

“Nosso trabalho, além de beneficiar a natureza, serve de instrumento pedagógico que favorece a organização social, produtiva e comercial, dando visibilidade local, nacional e internacional”, conta Evandro Araújo de Aquino, 34, assessor técnico em desenvolvimento regional e meio ambiente da Cooperfloresta.

Segundo ele, a principal diferença da instituição para outras cooperativas florestais está no modelo de governança desenvolvido, em que cada pessoa física (produtor florestal/extrativista) é cooperado direto, podendo ter atuação permanente nas instâncias de discussão e tomada de decisão. “A Cooperfloresta sempre busca seguir os princípios básicos do cooperativismo e tendo a transparência como um instrumento de gestão do manejo florestal comunitário”, diz.

São 26 funcionários registrados na cooperativa. O manejo florestal da Cooperfloresta é organizado por comunidades que fazem parte de associações de produtores extrativistas. As organizações são detentoras dos Planos de Manejo Florestal, junto aos órgãos ambientais, como, por exemplo, o Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac – esfera estadual) ou o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio – esfera federal).

Mas, afinal, qual a importância da certificação florestal para as comunidades? Evandro responde: “a certificação ajuda na manutenção das florestas em pé, contribui para o processo de gestão do manejo comunitário e mantém nossa credibilidade socioambiental”, explica.

A Cooperfloresta recebeu, em 2013, o primeiro selo de certificação florestal 100% comunitário do Brasil. Isso garante que todo o material da instituição vem de florestas manejadas por pequenos produtores ou comunidades, em equilíbrio com o meio ambiente.

Confiança verde

Para receber o selo FSC, a área deve passar por uma auditoria, para saber se todos os princípios e critérios estão sendo cumpridos. O Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), representante no Brasil da Rainforest Alliance, realizou este trabalho na Cooperfloresta.

A história entre as duas instituições é longa. “Os primeiros trabalhos com as associações comunitárias ligadas a Cooperfloresta começaram em 2002. A partir daí, a parceria ficou mais sólida e certificamos sete associações”, conta David Escaquete, 35, engenheiro florestal da Imaflora. Para ele, a certificação comunitária florestal é só sucesso. “Aprendemos a enxergar o valor da floresta do ponto de vista comunitário e sua importância para os povos das florestas”, ressalta.

A certificação florestal é importante para o comércio e economia local. Ainda assim, prevalece a compra e venda de madeira legal no Pará. Segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), cerca de ¾ de toda a madeira explorada no estado é ilegal. O Pará é o estado que mais produz e exporta madeira da Amazônia. O Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), do mesmo instituto, apontou que, em setembro de 2014, 23% do total de desmatamentos da Amazônia ocorreu no estado paraense. Um número preocupante considerando que 80% do seu território é composto por Floresta Amazônica.

“Por isso a certificação florestal é importante. Porque garante que infraestrutura local, formação de profissionais, remuneração pelos produtos madeireiros e benefícios sociais sejam garantidos. E garantem, a curto e longo prazo, uma floresta em pé e conservada”, diz David. A madeira certificada ainda não é maioria no estado porque enfrenta a desleal concorrência com a madeira ilegal, que é vendida a preço de banana, contra a madeira certificada, que tem seus valores embutidos na tora.

Apesar do estado possuir altas taxas de desmatamento ilegal de floresta nativa, Evandro é confiante em relação ao futuro da Amazônia e das comunidades locais. “Promover a conservação das florestas através do bom manejo florestal evita o desmatamento e garante um planeta melhor para minha geração e as que estão chegando”, diz.

Grande desafio

O Brasil ocupa o sexto lugar no ranking de certificação florestal FSC no mundo. Fica atrás de países como Rússia, Polônia, Estados Unidos e Canadá. “Para que o Brasil tenha ainda mais certificações, muitas coisas são necessárias. A necessidade deve partir das empresas, em se tornarem mais sustentáveis e do consumidor final. Além disso, políticas públicas devem pressionar atividades de exploração madeireira não-autorizada e estimular o manejo certificado”, aconselha Escaquete.

Para Fabíola Zerbini, 35, secretária-executiva do FSC Brasil, o desafio também parte do consumidor final. “A gente ainda tem muita ilegalidade e falsa legalidade de madeira – ou seja, a madeira sendo vendida como legal na Amazônia. Isso traz uma história de vida muito ruim: exploração ambiental, do trabalho”, explica. “É quase impossível competir com preço, com a facilidade das condições, versus uma empresa que cumpre todas as regras, leis, normas e as boas práticas. Se não formos nós, consumidores, a definir o que nós queremos, esses ilegais não vão sobreviver”, diz.

Há muito o que fazer, mas existem milhares de pessoas preocupadas com nosso futuro, que pensam na conservação das matas e do papel que a criança desenha. O futuro só será sustentável quando todos estiverem engajados. A luta já começou.

Texto premiado na Semana Abril de Jornalismo Ambiental, em novembro de 2014.

Me convidaram para uma festa de arromba

Cerveja quente, música ruim, comida fria, lugar abafado, anfitriões mais perdidos que cego em tiroteio. Se você não passou por isso, vai passar. São os casamentos-aniversários-festas-furadas. Geralmente ocorrem entre cerimônias de parentes, mas pode variar, e seus amigos, vizinhos, conhecidos, amigos dos amigos, podem te proporcionar um momento único. Único mesmo, para o cérebro acender aquela música anos 1980, que faz um animador de festa sem graça e sem noção tomar conta de você.

(In)felizmente, fui agraciada com algumas festas ruins durante minha vida. É como um dom; alguns constroem carros, salvam vidas, eu frequento festa ruim. Quem sabe um dia use essa “vantagem” em algum lugar. Já fui em um casamento, por exemplo, em que uma convidada “se explica” para a equipe de gravação que iria pegar cinco bem-casados porque eram para seus ente-queridos. “Olha, moço, eu tô pegando muito (aponta para a Serra da Mantiqueira de quitutes em seus braços), mas é um para mim, outro pro Fulano, pro Beltrano e pro Ciclano”, dizia enquanto olhava fixamente para a lente da câmera. Se alguém olhasse aquele fita por cinco segundos, seria abduzido pela tia dos bem-casados e viveria de sequestrar doces em casamentos. Escapei por alguns milésimos.

Algumas festas de crianças, dessas feitas em bufê, são montadas com o “kit cilada”: salgadinho frio por dentro, refrigereco e um desanimador de festa. Os comes e bebes dá até para ignorar, na barriga é tudo uma coisa só. E se ficar com muita fome, passa numa pizzaria que o problema tá resolvido. Agora, quem vai te devolver os minutos (ou horas) com o monstro das festas? Nem criança se diverte com esses “profissionais do humor”.

Fui em uma festa contemplada com o kit cilada. O cara que estava lá, teoricamente para animar, era também DJ e colocava umas músicas do Snoop Dogg para tocar, e, enquanto o som rolava ele soltava uns “puftz” no microfone. Até hoje eu tento entender se ele tava fazendo beat box ou cuspindo.

Festa rolando, música tocando (todo mundo sentado), tudo conforme as regras do kit. Até que o “animador” resolve realmente animar o local e faz… GINCANAS! Ah, quem foi o inventor dessa ferramenta destruidora de lares e humanidades? Para que isso? Qual a necessidade? Uma das brincadeiras idiotas era colocar um objeto numa caixa, que os convidados-sobreviventes tinham que adivinhar. Claro que nessa eu era aquela no canto, de cabeça baixa, no celular. E é CLARO que eu era alvo fácil. Esse tipo de “profissional” tem um olho laser para quem não quer se socializar.

– Olha lá, a mocinha!! Tá no celular, hein, hein? Tá falando com o namoradinho? (isso tudo gritando no microfone e provocando risadas nervosas da “plateia”)
– … Não?!
– hehe. Qual o objeto que tenho na caixa? Olha lá, hein, se não me responder, vou falar para seu papai que você tá de namorico pelo celular!

Me recusei a responder, logo fui saber que era um detergente. Depois desse “show” sem graça, ele distribuiu cartões para todas as pessoas com um sorriso “yeah, me contrate! ;)”. Quando eu quiser causar uma sessão de TRAUMAS E DORES na minha vida, quem sabe.

Outra vez, essa faz mais tempo, fui a um casamento em Guarulhos. Mas não era qualquer lugar da cidade; era a poucos metros do aeroporto. Ou seja, a cada cinco minutos, um avião passava pelos ares fazendo o maior barulho e causando tremedeira nos móveis. Mas tava bem caprichadinho, apesar de um pote de batata sauté por mesa.

Obviamente, já fui em lindas festas e também me diverti como ninguém. Cada uma com uma história de rir, chorar, revoltar ou só encher a barriga mesmo. Ainda assim, continuem me chamando para festar, quem sabe, neste dia, eu não seja presenteada com meu dom.

Uma celebração ao mau gosto

Do Datena aos urubus de suicídios urbanos: todo mundo gosta de celebrar o ruim, o pior, a desgraça alheia. Olham com desdém, condenam quem sofre, canonizam o torturador e até pedem de volta a tortura de ditaduras passadas. Vivemos tempos difíceis.

Em terra de abutre, carne fresca é rei. Carniça é feijão com arroz e a morte é banal. Mataram um brasileiro na Indonésia. Mas mata-se muito mais por dia, com uma arma de fogo financiada por nós. Normal, vida que segue, educação é na base da Lei de Talião. Nas manifestações, muito tiro público, muita bomba, medo, vidro quebrado. A pauta já sumiu do foco dos protestantes, agora é a vontade de escapar ileso. Nem que para isso você precise apanhar muito. Para ser visto, te transformam em baderneiro, bloco preto, jornalista vitimizada pela bala de borracha no olho. A violência é banal e, infelizmente, a única forma de chamar atenção. Esqueça Urach, agora seu nome é perna furada.

No CFC, dirigir é opção. Primeiro aterrorizam, depois ensinam as leis. Te mostram vídeos de mau gosto, de um acidente de ônibus. Todos mortos, braço para lá, cabeça e perna para cá, gritos de um só sobrevivente. “Graças a Deus ele está vivo. Sorte”, diz o professor, enquanto a sala, aterrorizada, olha o show de horrores com um grande cagaço. Espere a piedade divina todos os dias.

E a água vai acabar. E a Amazônia talvez vire pasto. E o metrô, o ônibus, a cidade, todos vão conviver com incertezas e interesses diariamente. Fique esperto. Olhe para os lados, tem estuprador, homem que come criancinha, tia tarada. Cuidado! Mas antes, veja essa história. De superação, atleta vence os obstáculos da vida, enfrenta a pobreza e hoje esbanja títulos e carrões. Algo de ruim aconteceu em sua vida, vamos explorar, fortalecer a dor, o sofrimento de ser esse bicho estranho que é humano. A dor, a dor, a dor.

Talvez há algo de verdade nesse medo, mas não se engane, é a hipocrisia quem assusta e tira o sono. Ela quem lidera manifestações francesas, quem pede por clemência mas mata, aflige e sufoca. É a hipocrisia casada com o mau gosto, flertando com o desrespeito. Todo dia, em todo canto, em nós.

Fique em casa. O assustado é você.

Hora do café

Fim do dia, um café ia bem. Na mesa, pão, bolo, tapioca. E muito papo. Haja papo! Abaixo, um pouco de uma conversa que gravei com meu pai, minha mãe, a tia e prima da minha mãe. E eu.

Porque tem coisas que devem ser registradas.

 

[pai] A pessoa vê matar uma galinha, matar um porco, matar um boi! Pode ver no frigorífico mesmo, você vê, você fala “nossa, que judiação, eu vou comer isso aí?”

[mãe] Em Pinheiro mesmo, naquele mercado, é muita nojeira aquilo ali, né?

[prima] É, aquele mercado lá…

[mãe] Chega lá tá os urubu do seu lado…

[pai] É, então, mas quem vive nesses lugar é normal.

[prima] É, é normal.

[pai] É a mesma coisa do cara que vive no lixão. Ele acha um saquinho lá, limpa, se tem carne podre lá dentro? Frita e come. Se morreu, ninguém alembra.

[mãe] Lá tem umas carnes expostas assim, né, pra vender. Isso pra eles é normal.

[mãe] Ah, mas aquelas carnes, se você for lá… é seboso, mas se você for lá, você fica besta. A carne fresquinha assim…

[prima] É, naturalzinha. Terminou de matar o boi.

[mãe] Tá lá, carne vermelha.

[prima] Muito gostosa.

[pai] É isso aí, mas do tempo em que eu tava em Rondônia, tinha muito disso aí. Tinha uma rua que era só carne, a rua ficava até vermelha.

[prima] Ah, mas carne fresquinha assim é muito gostosa.

[pai] Mas aquela carne boa é aquela que fica, sai o sangue todinho, se você faz uma carne de boi com sangue, não fica bom não, gosto ruim.

[prima] Não, ela sai o sangue, ela fica… como a carne é fresquinha, fica bem vermelha assim.

[tia] E tu foi no mercado quando foste lá?

[prima] Foi! Ela foi comprar peixe. Traíra, cada trairão, ó.

[mãe] Três panela de peixe.

[tia] Eu já falei pra ela, agora da próxima vez que ela vim, é pra trazer piaba.

[prima] Piaba seca.

[pai] Eu só sei que ela tava elogiando muito sua casa lá. Muito limpinho, muita comida.

[prima] Ah, minha casa toda vida foi assim. Quer ver? Pergunte pra Alice.

[tia] Como? Alice!

[prima] Graças a Deus.

[pai] Eu acho o seguinte: as pessoas, às vezes, não tem nada, mas tem o que comer. Pode perguntar pra qualquer pessoa, chega no interior, a primeira coisa que faz é o café.

[tia] É. Na vez que eu fui lá, eu só falto morrer de tanto comer. Cada casa que eu ia, era Joana, vamo, come isso, vem conhecer minha casa. Chega lá, menina, é uma mesa de uma ponta a outra, de tudo o que você…

[pai] É pão caseiro, pão de não sei do que, arruma tanta tranqueira pra por na mesa, que cê…

[tia] É, pamonha…

[pai] Na vez que faz pamonha, faz naquele fogão de chapa, né, e vai esquentando. Não tem um cristo que não come aquilo lá. É bom demais, cê tá louco. Churrasco? Não tem essa de fazer bifinho que nem aqui em São Paulo, que é bife. Vai aqueles peçona, vai até ficar tonto.

[mãe] Ah, aquelas carne gostosa…

[pai] Ah, bom demais.

[prima] Aquela gordurinha! Hmm.

[mãe] Nunca mais a gente comeu uma carne assada, né?

[prima] Oh, uma carne assada é bom demais.

[mãe] É bom demais.

[prima] É uma delícia.

[pai] É, mas aqui em casa não presta fazer não. Ninguém come. Se fizer um bife, dá pra todo mundo, então não tem graça.

[tia] É? Por quê?

[pai] A carne boa é assim, é tá assando e tá comendo.

[tia] Mas eu tô dizendo: as menina não gosta de carne assada?

[mãe] Gosta, tia, mas ele quer que come exagero. Olha, vai lá na feira, ele compra quatro dúzia de laranja, quatro dúzia de mexerica…

[mãe] Ué, mas não acabou?

[pai] Mas só eu e você que come! As menina nem trisca.

[pai] É por isso que tá gripada…

[fernanda] Eu como!

[pai] Eu compro, eu faço a feira, compro o que tiver na reta, eu vou comprando. ‘Ah, mas eu’. Não, não tem essa. Porque aqui em São Paulo tem muita gente que tem carro na garagem mas pra comer não tem nada. Então é isso aí. Enquanto puder, não tem essa frescura não. Agora não falta laranja, não falta banana, não é pra faltar nada disso aí.

[tia] Pelo menos laranja e banana tem que ter lá em casa. ‘Nelson, pelo amor de Deus, compra umas frutas’.

[pai] Se você ver o que essas fruta tem de bão… Por que que no tempo que a gente tava na roça, nunca ficou doente? Nunca tinha esse negócio de ficar doente? Só de comer coisa natural, tranqueirada do mato. Agora aqui não, geralmente é poucas pessoas que come banana, chupa laranja… Chupar laranja, não é o suco não. É polpa. Porque o sabor mesmo, a vitamina da laranja é você descascar ela…

[prima] E comer o bagaço!

[pai] Exatamente, é isso aí. Aqui o pessoal vai comer uma maçã, mas descasca. Tá perdendo a vitamina, que tá na casca. E por aí vai. 

 

Neocolonização: Altamira

Em 2013, os brasileiros saíram às ruas para reivindicar obrigações do Estado. Melhoria no transporte público, mais escolas, segurança e tantos outros temas foram ecoados na voz de jovens e adultos, que pediam por um país mais justo. No quesito meio ambiente, só dava ela: Usina Belo Monte. Considerada por ambientalistas uma das obras de maior impacto ambiental do Brasil, a barragem abastecida pelo rio Xingu foi pauta de muitos jornais e aqueceu o debate de geração e consumo de energia elétrica.

Em Altamira (PA), cidade que abrigará a nova usina, o discurso é diferente. Com cerca de 100 mil habitantes, o município ainda sofre com o descaso de itens básicos, como saneamento, ruas asfaltadas, hospitais e escolas que atendam à demanda da população. Com a chegada de uma barragem, o desenvolvimento viria com mais rapidez e traria dignidade para os povos locais, historicamente desassistidos pelos governos e autoridades.

Embora esteja em pauta somente agora, Belo Monte não é um projeto atual. Desde 1975, na época da ditadura militar, já existiam planos para a construção de uma barragem nas águas do Rio Xingu. O projeto, ainda naquela época, levantou polêmicas. O desvio das águas dos rios e construções poderia culminar num expressivo desmatamento da Floresta Amazônica, além de prejudicar a pesca dos povos ribeirinhos e indígenas. Estava aberta, oficialmente, a disputa entre nativos da região e Eletronorte – até então a empresa que administrava as obras.

Quatorze anos após os estudos de inventário hidrelétrico da bacia hidrográfica do Rio Xingu, foi realizado o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, na cidade de Altamira, em 1989. Entre os convidados, estava José Antônio Muniz, na época presidente da Eletronorte, que discutia a construção da barragem. Durante a reunião, muitos índios caiapós gritavam: “Kararaô* vai afogar nossos filhos!” Foi então que a índia Tuíra, altamirense e ativista em prol dos indígenas, em sinal de protesto, encostou a lâmina de seu facão no rosto do presidente. O ato tornou-se símbolo de resistência e ajudou a espalhar ao mundo os impactos que a usina traria para índios e floresta. As imagens registradas por dezenas de fotojornalistas circularam o mundo e contribuiu para interromper o projeto durante dez anos.

Dali em diante, o período seria marcado por acordos e reuniões entre nativos e pró-usina. Apesar dos impasses causados por ambientalistas e especialistas, foi publicado em 2009, a licença para construção da hidrelétrica de Belo Monte, e, em 2011, as obras foram iniciadas. Quando concluída, a barragem prevê capacidade de geração de pouco mais de 11 mil megawatts instalados, suficientes para abastecer 23 milhões de lares. Mesmo com as mobilizações para barrar as construções, o governo seguiu apoiando fortemente a medida, que integra o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). De acordo com declaração da presidente Dilma Rousseff, em 2010, “a construção (…) trará desenvolvimento à Altamira e região”. Cerca de 30 mil homens foram recrutados para darem início às obras.

Na cidade, o clima é de transição. Obras de infraestrutura são feitas em todo canto, apoiadas pela Norte Energia – desde o hospital público São Rafael até transposição de avenidas. Atividades estas que fazem parte das condicionantes sociais impostas pelo governo, para concessão da barragem. Em algumas vias do município, lojas e comércio disputam lugar com o barro das ruas não asfaltadas da região. Quando chove, forma-se uma lama de odor desagradável, composta por barro, água e esgoto, que dificulta a locomoção de pessoas e certamente promove a transmissão de doenças.

O tráfego nas avenidas é intenso quase o dia todo. O trânsito é caótico, como o de uma cidade grande em horário de pico. É frequente ver homens e mulheres andando de moto sem capacete ou levando uma criança entre dois adultos (todos sem segurança alguma). A cidade possui somente um único posto do Detran, que raramente põe seus guardas na rua.

Todos os dias, ônibus abarrotados de trabalhadores saem da cidade em direção ao Sítio Pimental, local destino das obras da usina Belo Monte. O transporte faz o serviço de leva e traz, para aqueles que não moram nos alojamentos construídos para os peões, nos arredores da futura barragem. São mais de 200 quilômetros ida e volta, todos os dias, aproximadamente quatro horas de viagem no total.

Destes trabalhadores, a maioria vem da própria região (54% do Pará e 30% da cidade de Altamira). Depois, aparecem maranhenses (18%), seguidos por habitantes de outros estados (28%), que desembarcam em Altamira em busca de melhores condições de vida. Há quem prefira ficar nos alojamentos construídos pela Norte Energia, próximos à usina, para economizar tempo. Segundo a empresa, mais de 10 mil trabalhadores estão abrigados nas casas, que tem água encanada, ar condicionado e TV via satélite. Todos os trabalhadores têm acesso ao refeitório, que fornece café da manhã, almoço e janta.

Para entregar a usina no prazo, o ritmo de trabalho é intenso em toda a semana, 24 horas por dia. Segundo a Norte Energia, em fevereiro de 2015, Belo Monte já deve produzir energia elétrica. A produção abastecerá as regiões norte, nordeste e sudeste do país. Durante a época de pouca chuva na região, no entanto, a produção cairá 50%. Para os engenheiros, esse fenômeno de nada interferirá no abastecimento e não trará prejuízos. Acredita-se que durante o período de cheia, cerca de cinco mil megawatts serão gerados, uma produção considerada alta por especialistas em energia elétrica, o que equilibraria a baixa produtividade do restante do ano. Para os ambientalistas, contudo, a obra se trata de um “elefante branco”, pois seu custo versus benefício colocaria em sério risco a biodiversidade amazonense.

Se para atender os prazos, a obra segue a pleno vapor, o descontentamento dos trabalhadores também segue em ritmo crescente. Greves e demissões são comuns. Trabalhadores de outros estados deixam família e parentes em outra cidade sob a promessa de bom salário, benefícios e estabilidade financeira. Ao chegar a Altamira, o cenário é outro: alguns trabalhadores relatam que boa parte dessas promessas não é cumprida e que o turno de trabalho é exaustivo. Resultado: média de 170 trabalhadores pede demissão todos os dias. Ainda assim, a procura por emprego na usina continua grande.

Com a explosão populacional da cidade, os hospitais da região não suportam a quantidade de pessoas que chegam para serem atendidas. Casos de brigas de bar no município ajudam a encher os leitos; sendo as principais causas esfaqueamentos e ferimentos por arma de fogo.

Atingidos pela barragem

Apesar da polêmica ambiental, Belo Monte tem trazido esperança para a maioria dos moradores locais, alimentado pelo clima de mudança a uma região pouco desenvolvida que historicamente recebeu pouca atenção dos governos. Com a chegada de muitos migrantes à região, o comércio alimentício aumentou consideravelmente – é comum ver um restaurante em cada esquina das ruas de Altamira. Bom para dona Rose, proprietária do restaurante O Caipirão, cujos pratos típicos mineiros atraem funcionários da Norte Energia e terceirizadas, que aproveitam da hora do almoço para saborear seus quitutes.

A obra também beneficia dona Irene Guerri, ou simplesmente Baiana da Cocada. A vendedora sai pelas ruas carregando cocadas e balas de coco em uma bacia na cabeça. Quase um símbolo de Altamira, ela conquista a todos com o sabor de seus doces e simpatia. A região amazônica possui terras férteis e produtivas. Medicilândia, cidade que fica cerca de 90 quilômetros de distância de Altamira, é a maior produtora de cacau do Brasil. O município vende a fruta para todo o País, e garante o sustento para muitas famílias.

Belo Monte chegou à Altamira e redondezas com promessa de desenvolvimento. Até seu pleno funcionamento e manutenção, estima-se que cerca de 50 mil pessoas sejam beneficiadas com a barragem. Como parte do Plano de Requalificação Urbana, a Norte Energia entregará até o final de 2015, cerca de 15 mil casas para abrigar os prejudicados pela cota 100 das águas do rio. As construções das moradias estão a todo vapor, mas muitos que receberam as casas reclamam pela falta de estrutura, infiltrações e perigo de desmoronamento de morros próximos, devido às chuvas. A carta de crédito, uma das opções dadas pela empresa para quem seria diretamente prejudicado pela barragem, ainda não saiu. O que obriga as pessoas a optarem pelas casas pré-moldadas, já que a compra e aluguel de residências prontas na cidade estão, assim como no resto do país, inflacionados.

O desenvolvimento chegou a todo custo no norte do Pará. Assim como na época do descobrimento do Brasil, a busca por melhoria econômica trouxe desequilíbrio ambiental, desapropriação de indígenas e pouco ou nenhum acordo que beneficiasse populações ribeirinhas e locais. As poucas escolas construídas na cidade já possuem apoio da Norte Energia e reforçam, em suas cartilhas e apostilas, como é bom ter uma barragem por perto. A ideia pode parecer positiva, mas até que ponto o desenvolvimento pode passar por cima da natureza e dos índios? Enquanto a pergunta não é respondida, Altamira convive com a ideia de que, um dia, terá estrutura de verdade para ser uma cidade desenvolvida. Em todos os sentidos.

*Kararaô, em jê-caiapó, significa guerra.

 

O Irã é aqui

Em março deste ano, forma divulgados abusos cometidos por homens, nos metrôs de SP. Se aproveitando do vuco-vuco do horário de pico, os tarados roçam nas mulheres que, quando conseguem, se defendem como pode. Mas o transporte cheio é o menor empecilho para fugir desses agressores; a sociedade é a pior dificuldade para nós, mulheres, nos livrarmos do machismo.

Segundo pesquisa do IPEA, divulgada ainda neste mês, 58% dos entrevistados pelo estudo confirmaram que “se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”. Ou seja, a forma como ela se veste “atiça” o instinto sexual selvagem do homem. Conclui-se então eles seriam seres indomáveis, que agem sem pensar quando cogitam “atacar” qualquer uma por aí.

Como forma de diminuir esses atentados, algumas políticas públicas paulistanas sugerem vagões só para mulheres, como forma de coagir esse tipo de atentado. Isso não combateria o caso e muito menos impediria os homens de agredirem sexualmente as mulheres. Além disso, no Rio de Janeiro, esta proposta já existe e não traz resultados efetivos.

A educação, o principal alicerce para mudar essa realidade, não é citada como mediadora de conflitos. No mais, é tratada pela mídia como forma de aprender “português e matemática e tentar passar em um vestibular”. Ainda segundo a pesquisa, pessoas que possuem ensino superior e não estão ligadas a alguma religião, tendem a discordar de pensamentos machistas que a maioria impõe. Neste, e em todos os casos sociais, uma política pública em que a boa educação, pautada no debate e na realidade, ainda é a solução para uma comunidade mais justa e igualitária, em direitos e deveres.

O ano é 2014, mas poderia muito bem estar encaixado em algum capítulo vergonhoso da Idade Média. Um comportamento machista, tal como vemos por aí, não se encaixa com o estereótipo feliz e alegre do brasileiro que nos fazem acreditar. Tudo bem a dançarina mostrar a bunda nos programas de TV dos finais de semana; mas é bom que ela ande bem coberta nas ruas. Tudo bem a mulher lavar, passar e cozinhar dentro de casa; mas saiba que quem manda é o homem.

O machismo escancarado dos países do Oriente Médio, onde mulheres vivem cobertas por uma decisão religiosa e social, não é muito diferente daqui. Louvamos o fio dental, mas pouco se fala sobre a independência das mulheres. Em tempos de Sakineh e de luta por um mundo mais justo, o Irã é aqui.